Fernanda voltava para casa daquilo que havia sido, de longe, a pior noite da sua vida. os carros, as pessoas e todos os barulhos cotidianos da cidade eram coadjuvantes dos seus berros ensurdecedores.
Aquela noite lhe doera mais que qualquer surra que tivera levado na vida, "palavra as vezes é pior que faca".
Não se sabe ao certo como Fernanda conseguiu chegar em casa com seus olhos inchados, seu corpo dolorido, seu carro velho e sua alma devastada. Mas ela chegou, e lá estava Davi, como sempre.
Davi era seu melhor amigo, seu irmão, suas pernas, seus braços. Moram juntos desde que perceberam que nessa vida de tropeços eternos, somente tinham um ao outro.
Davi não falou nada, pegou-a pelos braços, abriu a porta, levou-a até o chuveiro e saiu. Ele sabia que ela precisava de um banho, ela parecia suja, e não só por fora.
Fernanda se despiu com dificuldade, seu corpo tremia, a água era tão gelada que parecia perfurar seu corpo, mas ela estava tão dolorida, entorpecida e machucada que nem sequer notou, deixou a água escorrer sozinha tirando o cheiro daquele suor pútrido que exalava dos seus poros.
De volta para a sala, vestida com as roupas de Davi, pois as suas estavam todas sujas, ele serviu-lhe um copo de água da torneira, uma garrafa de um bom uísque, pegou seu violão e, ainda sem dizer uma palavra, começou a dedilhar um blues cortante.
Fernanda tomava a água e o uísque como se não houvesse diferença entre eles, observava a fumaça do seu cigarro, calada, o blues parecia acompanhar o ritmo dos seus soluços.
Ela parou na varanda, talvez um salto dali fosse menos doloroso, eles moravam num décimo quinto andar, ela pegou seu telefone, que não tocou sequer uma vez, e o jogou ali de cima, desejando que pelo menos uma parte dela estivesse nele, sendo espatifada no chão.
Davi permanecia ali, com seu blues, sem perguntar nada, e isso era tudo que ela queria, estava tão envergonhada que não teria coragem de contar nada, nem mesmo pra ele. Ela olhava seus dedos pelas cordas do violão, aquilo foi lhe trazendo uma falsa sensação de alivio. Tomou um longo gole do uísque e sua cabeça começou a se acalmar, o pranto foi se esvaindo e a dor amenizando.
- Eu não tenho forcas, eu não consigo ter forcas. Ela disse suas primeiras palavras da noite.
- Tem sim, basta ter. Davi retrucou como sempre sábio.
Davi sempre tinha razão em relação a tudo, isso irritava as vezes, mas ele jamais julgara Fernanda pelos seus erros.
Aquelas quatro palavras, diante de tantas outras humilhantes e fétidas que escutara naquela noite, foram suficientes para acalmá-la.
O sono veio, em companhia da tontura do uísque 12 anos, ela se deitou, Davi deitou-se ao seu lado, nunca houve uma gota de tensão sexual entre eles. Ela o abraçou enquanto sentia suas ultimas lagrimas caírem pelo seu rosto no peito de Davi.
- Obrigada pelo silencio.
Davi beijou-a na testa e dormiu. Fernanda encostou a cabeça em seu peito e fechou os olhos em seu primeiro momento de paz.
quando acordou, Davi já havia saído para o trabalho, Fernanda fez seu café forte e amargo, foi se olhar no espelho, seus olhos muito inchados, seu rosto um pouco marcado, seu corpo dolorido, as memórias da noite anterior assombrando sua cabeça, e ela não chorou, ela teve forcas, afinal bastava ter.
Pegou seu caderno e sua caneta, sorriu. A melhor parte de escrever uma historia e que ela pode nunca ter acontecido, e nunca aconteceu.
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Beijos e boa leitura